A primeira aventura de Tintin começou há 80 anos no suplemento infantil do jornal belga "Vingtième Siècle". Levou o herói ao País dos Sovietes e foi um sucesso imediato. Seguiram-se mais 22 aventuras do jovem repórter que conquistou um lugar à parte no imaginário colectivo
Nos primeiros dias de Janeiro de 1929, o jornal belga Vingtième Siècle incluiu um discreto anúncio. Em fundo, as cúpulas russas; em primeiro plano, um jovem de perfil, com uma cabeça redonda, nariz saliente, grandes sobrancelhas e cabelo rebelde caído para a testa. Calçava sapatos enormes e usava um fato de golfe aos quadrados. Na legenda: “Acompanhem, a partir da próxima quinta-feira, as extraordinárias aventuras de Tintin, repórter, e do seu cão, Milou, ao País dos Sovietes.”
Dito e feito: a 10 de Janeiro começou a ser publicada no suplemento infantil Petit Vingtième a primeira aventura daquele que se tornou um dos maiores ícones da BD mundial. Hergé entregava duas pranchas por semana, articulando gags e situações durante 69 episódios semanais, sem saber verdadeiramente até onde a narrativa o levaria e ao seu herói. Até 9 de Maio de 1930 o repórter belga mostrou toda a “verdade” sobre o “milagre soviético”. Acabou metido num comboio para Bruxelas, onde foi recebido em apoteose.
Na “tentativa biográfica” publicada no número especial (Abril de 1983) da revista (À Suivre), evocativo da morte de Hergé em 3 de Março desse ano, o crítico Pierre Sterckx conta que a viragem decisiva na obra do artista ocorreu em 1928. Hergé descobriu, através de jornais mexicanos enviados para Bruxelas pelo correspondente do Vingtième Siècle, a melhor banda desenhada da época — Krazy Kat, Bringing up Father, The Katzenjammer Kids. Ficou aqui selado o próximo passo do autor: uma verdadeira banda desenhada e não mais um mero texto suportado por imagens.
De onde lhe veio a ideia? A resposta de Hergé, numa carta enviada a um admirador, é de uma simplicidade tocante: “A ‘ideia’ da personagem Tintin e do tipo de aventuras que ele ia viver ocorreu-me, creio, em cinco minutos, no momento de esboçar pela primeira vez a silhueta desse herói: isso quer dizer que ele não tinha habitado os meus verdes anos, nem mesmo em sonhos”. Mas tem o cuidado de fazer uma ressalva: “É possível que eu me tenha imaginado, em criança, na pele de uma espécie de Tintin: nisso, mas apenas nisso, haveria uma cristalização de um sonho, sonho que é um pouco o de todas as crianças e não pertença em exclusivo do futuro Hergé”.
Além das motivações individuais do criador, há o contexto cultural e social em que surgem as aventuras do jovem repórter. O padre Norbert Wallez, director do Vingtième, encomenda ao seu jovem colaborador – Hergé tem então 22 anos e manifesta uma admiração pelo eclesiástico que nunca sofreu a menor quebra – uma história que metesse um adolescente e um cão. A ideia era transmitir valores católicos aos leitores, que ele pretendia educar no culto da virtude e do espírito missionário. O envio do jovem repórter à Rússia soviética, um reino satânico onde imperava a pobreza, a fome, o terror e a repressão, era uma solução que se adequava às mil maravilhas ao desejo do padre conservador.
Antes de Tintin, Hergé dera vida às aventuras de Totor, um escuteiro chefe de patrulha de quem o jovem repórter foi imaginado como um “irmão” mais pequeno. O autor veste-o com um fato de golfe apenas porque era uma indumentária que ele próprio gostava de utilizar com frequência. O resto é a expressão natural de um desejo de diferenciação de todas as demais personagens conhecidas. Assim surge o topete, que se tornou numa imagem de marca para todo o sempre.
Ao lado de Tintin encontramos desde a primeira hora Milou, um cão inteligente que é um companheiro e um cúmplice de todas as aventuras. Não é inteiramente animal, pois Hergé confere-lhe o dom da palavra e algumas das características que habitualmente se podem encontrar nos humanos: realismo, coragem e preocupação com o seu conforto, mas também instinto batalhador... e muita gulodice.
O êxito desta primeira aventura fará com que Tintin vá depois ao Congo, numa homenagem de recorte inconfundivelmente colonialista à acção da Bélgica no seu antigo território africano. E, logo a seguir, à América, onde Hergé desejara levar o seu repórter num contraponto crítico à incursão soviética, mas frustrado pela vontade do padre Wallez.
Virão depois mais 20 aventuras, através das quais a personagem ganha espessura, é rodeada de uma notável galeria de personagens secundárias – Haddock acima de todos, mas também Tournesol, os irmãos Dupond(t), a Castafiore e tantos outros – e ganha o sortilégio da cor e um traço cada vez mais moderno e maturado.
Poderá sempre dizer-se que tudo o que Tintin é hoje no imaginário colectivo já estava contido naquela primeira e primordial aventura. Os balões e outros signos da moderna BD europeia nascem um pouco ali. Mas também é certo que as narrativas ganham ao longo dos anos uma solidez e uma segurança que ainda mal se vislumbravam naquela história.
Como herói, Tintin é um repórter, nascido para correr mundo e viver aventuras empolgantes. Quase nunca escreve notícias, mas quem se importa com isso quando as suas histórias exprimem de forma tão eloquente esse desejo absoluto de justiça e humanidade que impregna cada quadradinho da série?
in Público, 10-01-2009
Nenhum comentário:
Postar um comentário